A expedição militar e científica
que o imperador Napoleão realizou ao Egito trouxe consigo, entre outras
inúmeras antiguidades, uma pedra encontrada em agosto de 1799 por soldados
franceses que trabalhavam sob as ordens de um oficial chamado Bouchard. Na luta
contra ingleses e turcos, eles estavam restaurando e preparando os alicerces
para ampliação de um antigo forte medieval, posteriormente chamado de Forte de
São Juliano, nas proximidades da cidade egípcia de Rachid (que significa
Roseta, em árabe), localizada à beira do braço oeste do Nilo, perto de
Alexandria, junto ao mar. Dois anos depois, pelo Tratado de Alexandria, o
achado foi cedido aos ingleses e hoje se encontra no Museu Britânico de
Londres.
Tendo ficado conhecida como Pedra de Roseta, é uma estela de
basalto negro, de forma retangular, medindo 112,3 cm de altura, 75,7 cm de
largura e 28,4 cm de espessura e que numa das faces, bem polida, mostra três
inscrições em três caracteres diferentes, em parte gastas e apagadas em virtude
do contato com a areia por milênios. Na parte superior, destruída ou fraturada
em grande parte, vê-se uma escrita hieroglífica com 14 linhas; o texto
intermediário contém 22 linhas de uma escrita egípcia cursiva, conhecida como
demótico, e a terceira e última divisão da pedra é ocupada por uma inscrição de
54 linhas em língua e caracteres gregos. Os três textos reproduzem o mesmo teor
de um decreto do corpo sacerdotal do Egito, reunido em Mênfis, em 196 a.C.,
para conferir grandes honras ao rei Ptolomeu V Epifânio (205 a 180 a.C.), por
benefícios recebidos.
Apesar da aparência insignificante da pedra, os estudiosos logo
perceberam o seu valor pelo fato de apresentar textos egípcios acompanhados por
sua tradução em uma língua conhecida, o que vinha, enfim, estabelecer pontos de
partida e de comparação tão numerosos quanto incontestáveis. Por ordem de
Napoleão Bonaparte a estela foi reproduzida e litografada e várias cópias
enviadas a diversos especialistas em línguas mortas. Entretanto, passaram-se 23
anos desde a data de sua descoberta até que um homem, Jean-François
Champollion, pudesse decifrar integralmente o seu conteúdo.
A Pedra de Roseta estará eternamente ligada ao nome de Champollion,
pois foi ela que serviu de base aos estudos que o levaram finalmente à
decifração dos hieróglifos. A verdade é que, ajudado pelo fato de que aquela
estela continha o mesmo texto grafado em hieróglifos, demótico e grego, ele
reconheceu nela o nome de Ptolomeu em grego e demótico e, assim, pode
identificar o cartucho com o mesmo nome em hieróglifos, dando, assim, um passo
importantíssimo na solução do enígma.
Mas afinal, o que estava escrito nessa famosa Pedra de Roseta? Pelo que
diz o texto, o faraó Ptolomeu V Epifânio havia concedido ao povo a isenção de
uma série de impostos e o fato, evidentemente, agradara a todos. Em sinal de
agradecimento os sacerdotes resolveram erguer uma estátua de Ptolomeu V em cada
templo e organizar festividades anuais em sua honra. Para deixar registrada
para sempre tal decisão, gravaram-na em várias estelas comemorativas e
colocaram uma delas em cada templo importante da época. Os soldados de Napoleão
toparam com uma dessas pedras. Apesar de estar mutilada, foi possível
reconstituir a totalidade do texto original da estela graças a outras cópias do
decreto que foram encontradas. Ele diz:
No decorrer do reinado do jovem que sucedeu a seu pai na realeza, Senhor
dos Diademas, mui glorioso, que estabeleceu o Egito e foi piedoso perante os
deuses, triunfante sobre seus inimigos e que restaurou a paz e a vida
civilizada entre os homens, Senhor dos Festivais dos Trinta Anos, semelhante a
Ptah, o Grande, um rei como Rá, grande rei dos países Alto e Baixo, progênie
dos Deuses Filopatores, aprovado por Ptah, a quem Rá deu a vitória, imagem viva
de Amum, filho de Rá, PTOLOMEU, ETERNO, AMADO DE PTAH, no nono ano, quando
Aetos, filho de Aetos, era sacerdote de Alexandria e os deuses Sóteres e os
deuses Adelphoi e os deuses Evergetes e os deuses Filopatores e o deus Epifânio
Eucaristo; Pyrrha, filha de Philinos, sendo Athlophoros de Berenice Evergetes,
Areia, filha de Diogenes, sendo Kanephoros de Arsinoe Filadelfo; Irene, filha
de Ptolomeu, sendo sacerdotisa de Arsinoe Filopator; aos quatro do mes de
Xandikos, de acordo com os egípcios, o 18ª de Mekhir.
O DECRETO.
Estando reunidos os Sacerdotes Principais e Profetas e aqueles que adentram no templo interior para aparamentar os deuses, e os Portadores de Abano e os Escribas Sacrados e todos os demais sacerdotes dos templos da terra que vieram se encontrar com o rei em Mênfis para a festa da assunção de PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, o sucessor de seu pai na realeza; estando todos reunidos no templo de Mênfis nesse dia, declaram que:
Estando reunidos os Sacerdotes Principais e Profetas e aqueles que adentram no templo interior para aparamentar os deuses, e os Portadores de Abano e os Escribas Sacrados e todos os demais sacerdotes dos templos da terra que vieram se encontrar com o rei em Mênfis para a festa da assunção de PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, o sucessor de seu pai na realeza; estando todos reunidos no templo de Mênfis nesse dia, declaram que:
considerando que o rei PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS
EPIFÂNIO EUCARISTO, o filho do rei Ptolomeu e da rainha Arsinoe, os deuses
Filopatores, foi um benfeitor tanto do templo quanto daqueles que vivem nele,
bem como de seus assuntos, sendo um deus oriundo de um deus e de uma deusa
amados de Hórus, o filho de Ísis e de Osíris, que vingou seu pai Osíris,
estando propiciamente inclinado em relação aos deuses, destinou à renda dos
templos riquezas e milho e empreendeu muitas despesas para a prosperidade do
Egito e para a manutenção dos templos e foi generoso sobretudo com seus
próprios meios; e isentou alguns e abrandou para outros os impostos e taxas
cobrados no Egito, para que essas pessoas e todas as demais pudessem viver em
prosperidade durante seu reinado;
e considerando que ele anulou os débitos que numerosos egípcios e o
restante do reino tinham com relação à coroa;
e considerando que para aqueles que estavam presos e aos que estavam sob
acusação há muito tempo, ele decidiu aliviá-los das cargas que pesavam contra
eles;
e considerando que ele confirmou que os deuses continuarão a viver das
rendas dos templos e das dotações anuais recebidas, tanto de milho quanto de
bens, bem como das rendas destinadas aos deuses pelos vinhedos, jardins e
outras propriedades que pertenciam aos deuses durante o reinado de seu pai;
e considerando que ele também decidiu, em respeito aos sacerdotes, que
eles não devem, para admissão ao sacerdócio, pagar mais do que as taxas
estabelecidas durante o reinado do seu pai e até o primeiro ano do seu próprio
reinado; e desobrigou os membros das ordens sacerdotais da viagem anual a
Alexandria;
e considerando que ele decidiu que não haverá mais nenhum recrutamento
compulsório para a marinha; e que da taxa sobre tecido de linho fino pago pelos
templos à coroa ele reduziu dois terços; e que qualquer que tenham sido as
negligências de tempos passados, ele as corrigiu devidamente, destacando-se
muito particularmente as taxas tradicionais a serem pagas apropriadamente aos
deuses; e igualmente a todos ministrou justiça, como Thoth, o grande e grande;
e decretou que aqueles que retornam da guerra e aqueles que foram espoliados de
seus bens nas épocas de turbulência, devem, no seu retorno, ser autorizados a
ocupar suas antigas propriedades;
e considerando que ele autorizou o desembolso de grande quantidade de
dinheiro e milho para enviar a cavalaria, a infantaria e a marinha contra
aqueles que invadirem o Egito por mar e por terra, a fim de que os templos e
todos aqueles que habitam na terra possam estar em segurança; e que tendo ido a
Lycopolis, no nomo de Busirite, com um abundante arsenal e outras provisões,
para constatar e dissipar o descontentamento provocado por homens ímpios que
perpretraram danos aos templos e a todos os habitantes do Egito, ele a
circunvalou de pequenas colinas, canais e complicadas fortificações; quando o
Nilo, que habitualmente inunda as planícies, teve uma grande cheia no oitavo
ano do seu reinado, ele a evitou construindo em numerosos locais desvios para
os canais, por um custo irrisório, e confiando a guarda desses locais à
cavalaria e à infantaria, em pouco tempo, ele tomou de assalto a cidade e matou
todos os homens ímpios, tal como o fizeram Thoth e Hórus, o filho de Ísis e
Osiris, em tempos passados, para subjugar os rebeldes no mesmo distrito; e como
seu pai havia feito com os rebeldes que haviam molestado a terra e lesado os
templos, ele veio a Mênfis para vingar seu pai e sua própria realeza e os puniu
como eles mereciam; aproveitando-se de sua vinda, ele fez executar as
cerimônias adequadas da sua coroação;
e considerando que ele dispensou o que era devido à coroa pelos templos
até o seu oitavo ano, não exigindo sequer uma pequena quantidade de milho ou
dinheiro; e que fez descontos também nas multas para os tecidos de linho fino
não entregues à coroa e para os que foram entregues diminuiu as taxas pelo
mesmo período; e que ele também isentou os templos do imposto de uma medida de
grão para cada medida de terra sagrada e, da mesma forma, de uma jarra de vinho
para cada medida de terra dos vinhedos;
e considerando que ele fez muitas oferendas a Ápis e a Mnevis e aos
outros animais sagrados do Egito, pois ele é muito mais preveniente do que os
reis que o precederam com relação a tudo que lhes dizia respeito; e que para
seus funerais ofertou o que era conveniente com prodigalidade e fausto, e que o
que foi pago aos seus santuários específicos o foi regularmente, com
sacrifícios e festivais e outras observâncias costumeiras, e que ele manteve a
honra dos templos do Egito de acordo com as leis; e que ornou o templo de Ápis com
um rico trabalho, dispendendo com isso grande quantidade de ouro, prata e
pedras preciosas;
e considerando que ele fundou templos e santuários e altares e reparou
aqueles que necessitavam de reparo, tendo o espírito de um deus benfeitor no
que diz respeito à religião;
e considerando que, após levantamento, ele vem reconstruindo, durante
seu reinado, os mais honoráveis dos templos, como se fazia necessário;
em recompensa pelo que os deuses lhe têm dado saúde, vitória e poder, e
todas as demais coisas boas, e ele e seus filhos permanecerão na prosperidade
por todos os tempos.
COM FORTUNA PROPÍCIA:
Foi decidido pelos sacerdotes de todos os templos da terra aumentar grandemente as honras devidas ao Rei PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, igualmente as de seus pais, os Deuses Filopatores, e as de seus ancestrais, os Grandes Evergetes e os Deuses Adelphoi e os Deuses Sóteres e colocar no local mais proeminente de cada templo uma imagem do ETERNO REI PTOLOMEU, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, que será chamado simplesmente "PTOLOMEU, o defensor do Egito", ao lado do qual deverá permanecer o deus principal do templo, entregando-lhe a cimitarra da vitória, e tudo será fabricado segundo os usos e costumes egípcios; e que os sacerdotes prestarão homenagem às imagens três vezes por dia, e colocarão sobre elas as vestimentas sagradas, e executarão outras devoções habituais como são devidas aos demais deuses nos festivais egípcios;
Foi decidido pelos sacerdotes de todos os templos da terra aumentar grandemente as honras devidas ao Rei PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, igualmente as de seus pais, os Deuses Filopatores, e as de seus ancestrais, os Grandes Evergetes e os Deuses Adelphoi e os Deuses Sóteres e colocar no local mais proeminente de cada templo uma imagem do ETERNO REI PTOLOMEU, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, que será chamado simplesmente "PTOLOMEU, o defensor do Egito", ao lado do qual deverá permanecer o deus principal do templo, entregando-lhe a cimitarra da vitória, e tudo será fabricado segundo os usos e costumes egípcios; e que os sacerdotes prestarão homenagem às imagens três vezes por dia, e colocarão sobre elas as vestimentas sagradas, e executarão outras devoções habituais como são devidas aos demais deuses nos festivais egípcios;
e construir para o rei PTOLOMEU, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, descendente
do Rei Ptolomeu e da Rainha Arsinoe, os deuses Filopatores, uma estátua e um
santuário de ouro em cada um dos templos, e colocá-lo na câmara interior com os
outros santuários; e nos grandes festivais nos quais os santuários são levados
em procissão, o santuário do DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO será levado em procissão
junto com os demais.
E para que ele possa ser facilmente reconhecido agora e para todo o sempre, deverão ser colocadas sobre o santuário dez coroas reais de ouro, às quais será acrescida uma naja, à semelhança de todas as coroas ornadas com najas que estão sobre os demais santuários, no centro da coroa dupla que ele usava quando adentrou o templo de Mênfis para realizar as cerimônias de sua coroação; e na superfície que rodeia as coroas, ao lado da coroa acima mencionada, deverão ser colocados símbolos de ouro, em número de oito, significando que esse é o santuário do rei que uniu os países Alto e Baixo. E como o aniversário do rei é celebrado no 30º dia de Mesore e como também se celebra o 17º dia de Paophi, dia em que ele sucedeu a seu pai, esses dias foram considerados como dias de devoção nos templos, pois eles são fontes de grandes bençãos para todos;
E para que ele possa ser facilmente reconhecido agora e para todo o sempre, deverão ser colocadas sobre o santuário dez coroas reais de ouro, às quais será acrescida uma naja, à semelhança de todas as coroas ornadas com najas que estão sobre os demais santuários, no centro da coroa dupla que ele usava quando adentrou o templo de Mênfis para realizar as cerimônias de sua coroação; e na superfície que rodeia as coroas, ao lado da coroa acima mencionada, deverão ser colocados símbolos de ouro, em número de oito, significando que esse é o santuário do rei que uniu os países Alto e Baixo. E como o aniversário do rei é celebrado no 30º dia de Mesore e como também se celebra o 17º dia de Paophi, dia em que ele sucedeu a seu pai, esses dias foram considerados como dias de devoção nos templos, pois eles são fontes de grandes bençãos para todos;
e foi decretado ainda mais que um festival terá lugar nos templos por
todo o Egito nesses dias de cada mês, acompanhados de sacrifícios e libações e
todas as cerimônias costumeiras dos outros festivais e oferendas serão feitas
aos sacerdotes que servem nos templos. E um festival terá lugar em honra do Rei
PTOLOMEU, ETERNO, O BEM AMADO DE PTAH, O DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, anualmente,
nos templos por todos os cantos da terra no 1º dia de Thoth durante cinco dias,
durante os quais eles usarão guirlandas e executarão sacrifícios e libações e
outros sacramentos habituais, e os sacerdotes de cada templo serão chamados os
sacerdotes do DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO e mais os nomes dos outros deuses que
eles servem; e seu sacerdócio será inscrito sobre todos os documentos oficiais
e será gravado nos anéis que eles usam;
e os particulares serão também autorizados a assistir os festivais e a instalar o santuário supra-mencionado em suas casas; executar as celebrações supra-mencionadas anualmente, a fim de que todos e cada um possa saber que os homens do Egito exaltam e honram o DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, o rei, de acordo com a lei.
e os particulares serão também autorizados a assistir os festivais e a instalar o santuário supra-mencionado em suas casas; executar as celebrações supra-mencionadas anualmente, a fim de que todos e cada um possa saber que os homens do Egito exaltam e honram o DEUS EPIFÂNIO EUCARISTO, o rei, de acordo com a lei.
Este decreto será inscrito sobre uma estela de pedra nos caracteres
sagrados e nativos e gregos e será erigida em cada um dos templos de primeiro,
segundo e terceiro graus, ao lado da imagem do Rei.
A Decifração dos Hieróglifos |
Na
evolução dos estudos, Champollion começou a deduzir os princípios da escrita
egípcia. Considerando os símbolos isoladamente e tomando seus nomes em copta,
percebeu a equivalência entre o valor do hieróglifo e a primeira letra da
palavra naquela língua. Por exemplo, o leão, pronunciado labor em
copta, tinha o valor da letra L; o desenho da mão, toot em
copta, tinha o valor da letra T; o desenho da boca, ro em
copta, tinha o valor da letra R, e assim sucessivamente. Partindo
de sons simples assim isolados e aplicando seus valores fonéticos em todos os
trechos em que apareciam, ele buscava, a seguir, ajuda no texto grego para
imaginar que som, em copta, poderia ter a tradução de determinada palavra
grega. Até aqui ele estava convencido de que o seu método de tradução
funcionaria com todos os nomes não egípcios. Tendo reunido cartuchos do período
greco-romano da história egípcia, Champollion conseguiu decifrar 79 nomes de
reis para os quais identificou todas as letras. Quando, finalmente, em setembro
de 1822, examinou cartuchos de nomes de faraós puramente egípcios — Ramsés e
Tutmés (Tutmósis) — e conseguiu decifrá-los, percebeu que havia encontrado
realmente a chave do entendimento da escrita hieroglífica.
Decifrar o
significado dos sinais hieroglíficos e mesmo ler nomes de reis de pouco
adiantaria se não fosse possível traduzir os textos nos quais esses elementos
estavam inseridos. Um dos principais fatores que permitiram a tradução foi o
fato da língua copta ter sobrevivido até o século XVI da nossa era como a
língua da população cristã do Egito. Mesmo na atualidade ela ainda é lida,
embora não entendida, nas igrejas coptas. Seu vocabulário é constituido de
palavras egípcias suplementadas por um considerável número de palavras
emprestadas diretamente do grego. Profundo conhecedor do copta que era,
Champollion tinha condições de traduzir palavras gregas da pedra de Roseta para
aquela língua. Depois que descobriu os princípios da escrita egípcia, passou a
procurar nos locais adequados do trecho em hieróglifos as palavras cujas
"letras" correspondiam àquelas das suas traduções em copta. A tarefa
era dificultada pelo fato dos egípcios não separarem as palavras umas das
outras. Na medida em que aumentou o número de hieróglifos decifrados, ele
inverteu o processo e passou a traduzir para o copta palavras que ele podia ler
em hieróglifos e, assim, entender o seu significado. Havia limitações nesse
esquema porque eram poucas as palavras egípcias que haviam sido preservadas em
copta e outras haviam sido tão deturpadas nessa última linguagem que era
difícil reconhecer suas origens no idioma egípcio. Nos casos em que o copta não
podia ajudar na interpretação de uma palavra, Champollion recorria a métodos
dedutivos, baseado nas várias ocorrências de uma mesma palavra em contextos
diferentes, ou ao hebreu, idioma no qual foram preservadas muitas palavras do
tronco comum semítico, as quais também foram incorporadas à linguagem egípcia.
Desta maneira os egiptólogos puderam fazer a leitura de praticamente todos os
sinais hieroglíficos e entender o significado de grande parte do vocabulário
egípcio.
O grande
mistério que envolvia a decifração dos hieróglifos era devido ao fato de que a
estrutura desse sistema de escrita combina três categorias de símbolos: os
fonogramas (do grego phone = som + gramma =
caracteres escritos), os ideogramas (do grego idea = idéia
+ gramma = caracteres escritos) e os determinativos. Ao
contrário do que geralmente se pensa, a escrita hieroglífica é em parte
fonética. Muitos dos símbolos funcionam como fonogramas, ou seja, são sinais
gráficos que representam um som fundamental (fonema) ou uma sequência de
fonemas. Nesses casos se emprega uma imagem não para significar o que ela
representa, mas apenas pelo valor fonético daquilo que ela representa. Por
exemplo: a figura de uma lebre não é usada geralmente para escrever lebre,
mas sim para grafar os dois sons fundamentais que entram na palavra que
significa lebre em egípcio, isto é, o W e o N. Os fonogramas são sempre
consonantais, pois a escrita hieroglífica não grafa as vogais. A prática usual
dos estudiosos ao traduzirem um texto hieroglífico consiste em intercalar entre
as consoantes as letras e ou o, mas isso é meramente convencional.
É por isso que os nomes próprios egípcios de faraós e personagens importantes
são grafados por vezes de formas diferentes.
Há três
categorias de fonogramas. Aqueles que representam apenas um som são chamados de
sinais "alfabéticos". Eles formam um pequeno conjunto cujos
componentes equivalem, aproximadamente, do ponto de vista sonoro, às letras do
nosso alfabeto. A figura da boca, por exemplo, representa a letra R;
o desenho da mão, a letra T e um pedaço de tecido dobrado, a
letra S. Os fonogramas que representam dois sons, isto é, sinais
que grafam uma sequência de duas "letras", chamados de biliterais,
são, teoricamente, mais de 600, considerando-se o número de combinações
possíveis com os diversos sinais "alfabéticos". Na prática, apenas 90
eram empregados. Alguns exemplos são o desenho de uma cesta, representando as
letras NB; a figura de uma lebre, significando WN; um
rosto, indicando as letras HR. Finalmente, os fonogramas que
representam três sons, ou seja, grafam uma sequência de três
"letras", denominados triliterais, são cerca de 60. Entre eles
figuram um coração e uma traquéia, símbolo das letras NFR; uma tira
de sandália, que era lida como NKH e um pão sobre uma esteira,
grafia das letras HTP.
Enquanto
que os fonogramas grafam a palavra decompondo-na em seus sons fundamentais, os
ideogramas escrevem-na de maneira global. Eles indicam o significado de uma
palavra pictoricamente, sem mostrar como deve ser lida. Exemplificando: posso
escrever Sol foneticamente; mas também posso escrever
ideograficamente, empregando o desenho do Sol. Os símbolos empregados como
ideogramas significam aquilo que eles representam e outras idéias que possam
estar associadas a ele. O ideograma do Sol, por exemplo, pode significar o
astro em si ou qualquer outra palavra de sentido associado ao Sol e suas
características como luz,brilho, dia, pôr-do-Sol,
etc. O ideograma de um barco pode significar vários tipos de embarcação
como bote, barcaça, navio e também
verbos referentes à navegação. Para distinguir uma palavra da outra os egípcios
usavam os sinais determinativos, como veremos mais adiante.
Nessa
categoria dos ideogramas, quando a idéia é abstrata e difícil de exprimir com
uma só figura, seria natural que os escribas criassem uma espécie de enigma
figurado combinando duas ou mais imagens para escrever a palavra. E eles faziam
exatamente isso. Em português, por exemplo, poderíamos desenhar a figura de um
bochechudo deus dos ventos e um rosto contraído para escrever a palavra ardor.
A relação entre representação e significado pode ser direta ou indireta. É
direta, por exemplo, quando se mostra um contorno com um palácio no ângulo para
significar recinto, palácio. É indireta, por exemplo, quando se mostra um
falcão para significar o nome do deus Hórus. Dos aproximadamente 700
hieróglifos que eram de utilização frequente no cotidiano, pelo menos 100
sempre permaneceram ideográficos e nunca se tornaram símbolos fonéticos. É
curioso notar que um sinal ideográfico, além de representar a palavra que
retratava, também podia exercer o papel de um determinativo para a
representação fonética da mesma palavra. Exemplificando: o desenho de um
obelisco, palavra grafada tekhen em egípcio, podia significar
exatamente isso — obelisco. Mas também podia vir após os
hieróglifos fonéticos das consoantes t+kn+n como um
determinativo do significado da palavra obelisco.
Finalmente,
os determinativos são sinais que, colocados no final de uma palavra, têm a função
de indicar em que classe semântica se enquadra a palavra que eles determinam.
São, portanto, classificadores, puramente gráficos, e sem correspondentes na
língua falada. Por exemplo: tudo aquilo que implica a idéia de violência é
seguido pelo sinal de um braço armado; termos que designam seres de prestígio
se encerram com um homem barbudo sentado; o determinativo de água se emprega
com as palavras que designam as grandes extensões de água, os líquidos, e mesmo
com aquelas que significam ter sede ou matar a sede.
Embora os determinativos não fossem de uso obrigatório, tinham importante papel
na escrita. Permitiam, por exemplo, que se fizesse a distinção entre palavras
homófonas. Os termos ser estabelecido e sofrer eram
escritos da mesma maneira:MeN. O que distinguia as duas palavras era o
determinativo de abstrato (um papiro selado), no primeiro caso, e o
determinativo de mal (um pardal), no segundo. O professor Lionel Casson nos
mostra um outro exemplo:As letras hnu podiam ser
pronunciadas como qualquer coisa desde hiniu a ohanou e
ter vários sentidos diferentes. Por isso a palavra nunca é encontrada sem um de
vários determinativos: um vaso de cerveja para indicar a palavra de uma medida
para líquidos; um homem fazendo o sinal ritual de regozijo para indicar a
palavra correspondente a alegria, e as figuras de um homem e de uma mulher
sobre um símbolo de plural (três traços paralelos) para indicar a palavra que
significava vizinhos ou companheiros. Graças a esse sistema, os egípcios podiam
usar o mesmo grupo de letras para indicar até 10 palavras inteiramente
diferentes.
Ainda para
esclarecer o emprego dos determinativos, façamos de conta que queremos escrever
com hieróglifos palavras da língua portuguesa. Tomemos, por exemplo, a
palavra ramo. O desenho de um ramo de árvore pode representar não
só a palavra ramo em si, mas também todas as palavras que
contenham o grupo consonantal RM: Roma, aroma, remo, arma, rima, Remo, etc. Ao
escrever uma frase como cortei um ramo de árvore o hieróglifo
do ramo seria usado sem qualquer determinativo. Nos demais casos o ramo seria
acompanhado por um hieróglifo que representasse cidade, para a palavra Roma; um
nariz, para a palavra aroma; um remo, para a palavra remo; um braço armado para
a palavra arma; um sinal de conceito abstrato (um papiro selado), para a
palavra rima e um homem sentado para o nome próprio Remo. Se quisséssemos
esquever Rômulo, acrescentaríamos ao ramo a letra L (a figura de um leão) e
mais um homem sentado para indicar tratar-se de um nome próprio. Além de servir
muito adequadamente para distinguir palavras homófonas, o determinativo tinha a
vantagem de delimitar as palavras dentro da sucessão contínua dos sinais da
escrita, já que não havia espaços em branco entre elas. São essas, portanto, as
três funções que os hieróglifos podiam desempenhar: fonogramas, ideogramas e
determinativos. Alguns sinais exerciam apenas uma delas. Outros podiam exercer,
alternativamente, duas ou até mesmo as três funções. Aparentemente isso tudo
poderia gerar uma infinidade de combinações e uma grande confusão. Na prática
as mesmas palavras eram quase sempre escritas do mesmo modo.
Não havia
regras fixas para a combinação das três categorias de sinais. Isso dependia dos
usos e de tradições, as quais variaram ao longo do tempo. Entretanto, alguns
princípios fundamentais permaneceram estáveis, como se segue:
1) Os sinais puramente ideográficos estavam essencialmente limitados aos nomes das divindades e aos termos do vocabulário fundamental. Frequentemente o ideograma é identificado como tal por um traço que o acompanha. Assim, o desenho de uma boca com o traço representa, ideograficamente, boca, fórmula, enquanto que o mesmo desenho sem o traço é o sinal alfabético para R;
2) Com muita frequência as palavras são escritas com a ajuda de fonogramas, geralmente seguidos de um ou vários determinativos, como já vimos nos exemplos dados acima. Assim, SeKHeR, que significa plano, diretiva, era escrito com os fonogramas S, KH e R, seguidos do determinativo de abstrato (um papiro selado);
3) Os fonogramas são correntemente empregados de forma redundante para explicitar parcial ou totalmente um ideograma, ou até mesmo um outro fonograma. A figura de um escaravelho pode significar, por si só,KHePeR, cujo sentido é nascer, vir a ser. Esse hieróglifo é frequentemente combinado com o sinal alfabético R e, nesse caso, não se lê KHePeR+R, mas apenas KHePeR, pois o R é uma redundância, ou seja, um complemento fonético. Os complementos fonéticos podem funcionar em vários graus. Um ideograma ou um fonograma de dois ou três sons podem ser explicitados por outros fonogramas. Por exemplo, a figura de um muro, ideograma para a palavra JeNeB, que significa exatamente muro, pode ser explicitado por JeN (um peixe) e o sinal alfabético B, enquanto que esse mesmo JeN é, por sua vez, explicitado pelos sinais alfabéticos J eN.
1) Os sinais puramente ideográficos estavam essencialmente limitados aos nomes das divindades e aos termos do vocabulário fundamental. Frequentemente o ideograma é identificado como tal por um traço que o acompanha. Assim, o desenho de uma boca com o traço representa, ideograficamente, boca, fórmula, enquanto que o mesmo desenho sem o traço é o sinal alfabético para R;
2) Com muita frequência as palavras são escritas com a ajuda de fonogramas, geralmente seguidos de um ou vários determinativos, como já vimos nos exemplos dados acima. Assim, SeKHeR, que significa plano, diretiva, era escrito com os fonogramas S, KH e R, seguidos do determinativo de abstrato (um papiro selado);
3) Os fonogramas são correntemente empregados de forma redundante para explicitar parcial ou totalmente um ideograma, ou até mesmo um outro fonograma. A figura de um escaravelho pode significar, por si só,KHePeR, cujo sentido é nascer, vir a ser. Esse hieróglifo é frequentemente combinado com o sinal alfabético R e, nesse caso, não se lê KHePeR+R, mas apenas KHePeR, pois o R é uma redundância, ou seja, um complemento fonético. Os complementos fonéticos podem funcionar em vários graus. Um ideograma ou um fonograma de dois ou três sons podem ser explicitados por outros fonogramas. Por exemplo, a figura de um muro, ideograma para a palavra JeNeB, que significa exatamente muro, pode ser explicitado por JeN (um peixe) e o sinal alfabético B, enquanto que esse mesmo JeN é, por sua vez, explicitado pelos sinais alfabéticos J eN.
Se tudo
isso parece confuso para você, com certeza não o era para os escribas. Ao
escrever uma palavra ele poderia, na maioria dos casos, adotar um dentre vários
métodos diferentes. Podia simplesmente escrever o ideograma, geralmente
acompanhado por um traço vertical sob ele, indicando que aquele sinal tinha
valor de ideograma. Com maior frequência, entretanto, ele usaria fonogramas
seguidos por um ideograma, ou seja, por um determinativo que esclareceria o
sentido geral da palavra. Quando existisse um sinal biliteral ou triliteral
adequado o escriba o empregaria e, frequentemente, lhe acrescentaria alguns
sinais alfabéticos, mesmo que estes já estivessem incluídos no fonograma. Tão
incômoda e ilógica parece ser essa multiplicidade de sinais, — comenta
o egiptólogo T. G. H. James — que é difícil de entender o processo de
raciocínio pelo qual eles evoluiram, e ainda mas difícil de imaginar porque
teriam continuado com tão pouca alteração durante um período de tempo tão
longo.
Conforme
já dissemos, os egípcios não escreviam as vogais. Elas apenas eram grafadas
quando eram semiconsoantes, ou seja, quando exerciam função de consoante. Tal
fato não é surpresa para o mundo moderno que conhece as línguas árabe e
hebraica, as quais também não escrevem as vogais. Porém, como diz com muita
graça o escritor Federico Mella, em caso de necessidade, há sempre um
árabe ou um israelense por perto para tirar-nos as dúvidas, ao passo que entre
nós não existe nenhum antigo egípcio para nos ensinar. Na maioria dos
casos as vogais não eram escritas e torna-se difícil para nós, e frequentemente
impossível, imaginar qual teria sido a pronúncia correta de tais palavras.
Quando viável, os estudiosos baseiam-se nas palavras coptas correspondentes.
Vejamos os exemplos dados por aquele autor: O deus de Tebas se escreveIMN.
Eis por que os gregos chamavam de Amenófis, Amenmenes, etc., os faraós que
traziam nomes a ele dedicados; é provável que a dicção certa fosse Amen, como
prefixo, e Amon sozinho. Outro exemplo é o nome de Nefertiti que se
escrevia NFRTIITI, obviamente de difícil pronúncia. Visando
somente superar estas dificuldades fonéticas, espalhou-se o uso de inserir
entre as consoantes a vogal E e até mesmo outra se possível.
Por esta razão nós chamamos a bela rainha Nefertiti ou Nefertite.
É provável que a dicção mais adequada seja Nofretiti. Mas trata-se
apenas de um método circunstancial, ao qual se recorre na falta de
apontamentos, isto é, quase sempre; e também não constitui norma. Por exemplo,
o nome do deus de Mênfis se escreve PTH, e se lê comumente PTAH,
e não Peteh ou Petehe. Acrescentamos que esseH era
áspero, mas permanece o fato de que não sabemos como soava no idioma egípcio —
salvo em poucas exceções de que se tem conhecimento. E o autor
conclui: Deparamos com diversas dificuldades diante da escrita etrusca:
podemos lê-la, mas não traduzi-la. Aqui, pelo contrário, podemos traduzi-la,
mas não pronunciá-la. Isto causa com frequência muitas desigualdades na maneira
de escrever os nomes dos faraós e das cidades.
NOTA: O nome de Ptolomeu era escrito PTOLMIIS. O de Cleópatra era grafado QLIOPATRAT. O T final era uma desinência
feminina, comum a todos os nomes femininos egípcios, o que também se usava em
copta e Champollion bem conhecia. O último sinal, um ovo, enfatizava novamente
que se tratava de uma mulher.
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